terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Pra que que eu fui inventar de fazer essa coisa de transplante?

Geralmente é no silêncio da noite que a consciência consegue ser melhor ouvida. Quando surge numa madrugada especial mesmo que ela não grite a gente fica quieto e pede pra escutar. Neste início de madrugada do dia em que os anos se apresentam a mim cobrando mais um dígito penso nas folhas tão viradas do calendário. Folhas até que se desprenderam. Algumas perdi.

Meus anos recentes foram de profundas transformações e mudanças que pouco podem ser mensuradas. E acho que as relato aqui como forma de acreditar que tudo ocorreu por algum motivo e talvez o que vivi inspire alguém. Ou mesmo para não me permitir esquecer fatos transformadores.

Quando a realidade de um transplante duplo se materializou em minha vida como única alternativa para manter uma qualidade de vida que me permitisse viver de forma mais "normal" logo procurei encarar de frente e não me abater mesmo com a doença progredindo e a perspectiva do transplante demorar. Lembro de precisar muita energia para efetuar pequenos esforços e necessitar períodos de repouso. A insuficiência renal também diminui a fabricação de sangue pelo organismo afetando a distribuição de oxigênio para os músculos. Aliado a diabetes, não carregar as sacolas de mercado a pedido de minha mãe por vezes podiam parecer atos de malcriação. 

Mas seguia firme e trabalhando. Inclusive quando a realidade de fazer hemodiálise se abateu. E foi um momento pesado em que me abati. Enquanto aguardava no hospital minha vez de colocar um cateter no pescoço (a fístula no braço ainda não estava boa para a punção da hemodiálise) a desesperança me tomou. Com a dor de uma derrota na alma, num silencioso pranto de lágrimas fartas, me desentendi de vez com Deus. Passaria a viver ligado a uma máquina sabe-se lá até quando. "Por que pediste de mim mais uma dura prova, Deus?" Minha liberdade e independência estavam comprometidas. Uma coisa que gostava de fazer e não poderia era viajar. Por isso transplantei.

Com a devida paciência inerente a um sagitariano otimista, logo o transplante chegou e mesmo com os difíceis dias após a cirurgia já me sentia de esperança renovada. Logo eu ia poder voltar a viajar. Não sou nenhum Marco Polo mas em tratamento de hemodiálise pode esquecer viagens. Até finais de semana com feriado prolongado com churrasco ou cerveja na praia ou mesmo algumas horas de pé numa fila pra um mega show internacional. Mas a partir do transplante muita coisa voltaria a ser possível. E foi. Está sendo.

Nos poucos mais de 2 anos de meu transplante as coisas acabaram não sendo tão fáceis o que me rendeu internações e até uma amputação do dedão do pé em que a recuperação.já se arrasta a meses. Mas consegui voltar a fazer o que queria que era poder viajar. Fui a São Paulo ver meus padrinhos que amo; conheci a arena do Palmeiras no amistoso da seleção (nunca tinha visto jogo do Brasil); fui na Liga Mundial de Volley (meu padrinho adora essa história), revi e conheci amigos; também fui a Porto Alegre, Gramado e ao Rio de Janeiro. Sem contar Santa Catarina (confissão, fui a praia de nudismo exibir a cicatriz no pânceps ... rs). Enfim. Viver o verbo. Não como substantivo. Porque vida até uma samambaia tem. Mas sem dúvida a grande viagem tem sido a interior.

É impossível não passar por essas coisas e não processar mudanças significativas. Hoje me deixo dominar por uma serenidade maior e uma forma de pensamento muito singular sobre as coisas da vida, coisas que me atingem. Escolho melhor minhas batalhas e tento passar um pouco dessa minha visão, com minha experiência para que de repente ajude alguém. Escrevo pra acreditar que nada foi em vão e assim tentar fazer as pazes com Deus. 

Claro que essa reflexão as vezes é frustrante. Não dá pra querer que os outros aprendam com o que você passou. Mas eu acho um desperdício. Empresto minhas dores para outros aprenderem. Se possível. Mas as vezes cada um tem que cortar sua própria carne. Fazer o quê?

Tem gente que escolheu as aparências sem saber que o preço da maquiagem chega.

Há os que perdem amores pois vivem os amores dos poetas e não dos construtores. Amor penso ser construção. Quem constrói admira, cuida e reforma se precisar pra tudo não ruir

Ajudar a quem pede. Não a quem precisa. Quem pede ajuda é porque adquiriu sua dose de humildade e percepção.

Fazer as pazes com a solidão. Ela é ótima pra fazer você conversar consigo mesmo. E não briga pelo controle da tv.

Ouço tanta gente reclamando que odeia mentiras. Mas tem sérios problemas em ouvir verdades.

Entre outras pequenas verdades particulares que para mim tem funcionado. Se o amanhã é incerto o que dizer do depois de amanhã?

Parece que se Deus escreve certo por linhas tortas não signifique apenas que Ele tenha Parkinson. se é pra chegar lá em cima com a paz firmada saibam que ainda há focos de incêndio para apagar. Jamais apagamos todos os incêndios de nossas vidas. Dá pra tentar conviver com uns chamuscados. É muito melhor. Enfim, parece que o transplante foi uma ótima ideia. Uma viagem incrível.


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5 comentários:

  1. Speechless... muita gente, muita gente, precisa ler isto que escreveu! Feliz Aniversario!

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    1. Indique esse texto. Me compartilhe. hehe. Se isso ajudar alguém, me ajudará tb. Bj

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  2. Querido amigo....
    Você tem o que falar....
    Você sabe o que falar...
    Mutio mais do que a grande maioria faz.....repetir o que já foi dito....
    Você tem conteúdo e sabe COMO falar.....
    FALE PELO AMOR DE QUEM QUER QUE MANDA NESSE MUNDO!
    As pessoas estão ficando surdas, amputadas da própria alma.....
    Você TEM O QUE FALAR!!!
    Muito mais do que o menino perverso e imbecil da revista!
    Vamos fundar o blog BOCA NO TROMBONE????? Rsrsrs
    Feliz aniversário
    Beijos imensos

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